sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

À espera, no cais... (depoimento)

Adelino Gomes: o jornalista esperou Zeca no cais da
Rocha, no regresso do "andarilho" de África,
em 1967, para ouvir as suas primeiras declarações.
Um acto solitário - do jornalista e do poeta/cantor/músico


Conheci-te pessoalmente vai fazer 21 anos [este depoimento foi publicado em 1988].
Esperei-te no cais da Rocha do Conde de Óbidos, junto dos funcionários da Alfândega, da Guarda Fiscal, da Pide. Vasculhavam eles arcas e malas e eu, de gravador ainda desligado, para trás e para diante, ao sabor das tuas necessidades alfandegárias, tentando vencer a (futura) lendária relutância do Dr. José Afonso a falar de música, das suas cantigas.
Guardo uma vaga memória da tua mulher, da(s) criança(s), das respostas evasivas a provocarem-me a situação de desconforto que volta e meia tenho de suportar noutros episódios desta profissão de intruso.
Ninguém para te abraçar, à chegada do navio.
E tu a mostrares-te admirado (desconfiado?) com a minha insistência em falar-te de música e da importância das tuas canções. A minha tarefa era recolher as tuas primeiras declarações no regresso à "metrópole". Não me lembro como, mas eles eram bons profissionais, o Carlos Cruz e o Fialho Gouveia, realizadores do programa PBX (Onda Média do Rádio Clube Português, da meia-noite às duas), sabiam que ias chegar naquele dia do Verão de 1967. Encarregaram-me de te entrevistar, e de te convencer a gravar algumas canções para o programa. Gravar gratuitamente, que era a velha forma nacional-porreirista de aproveitar os cantores de resistência sem olhar aos seus dramas, sem nos interrogarmos sobre (se tinham) dificuldades materiais.
Vinhas esgotado da experiência colonial de Lourenço Marques e da Beira. E sem um tostão. Não sabias bem ainda onde ficarias a residir. Julgo que me falaste de Setúbal, mas também de Faro. Só encaravas o ensino como modo de vida.
Regressei impressionado à Sampaio e Pina. Tentei que os realizadores convencessem os produtores - os Parodiantes de Lisboa - a pagarem as gravações que te dispuseras a ir fazer dentro de dias. Recordo a alguém a argumentar (interessa saber quem, em particular?) que o Zeca Afonso se devia sentir muito grato ao PBX por este o relançar no país.
A fiscalização do RCP - junto da qual funcionava um representante dos Serviços de Censura - cortou o programa e só uma cunha do actor Raúl Solnado ao Subsecretário de Estado da Pre­sidência do Conselho, Paulo Rodrigues, permitiu a sua transmissão umas noites depois.
Nunca tive coragem de te perguntar se recebeste algum dinheiro pelas gravações. Julgo que te pagaram apenas os transportes para e de Lisboa. Não me lembro que canções novas (era a exigência) cantaste. A lógica manda-me pensar que foram canções incluídas no LP Cantares do Andarilho (1968) ou nos Contos Velhos Rumos Novos. Porém, não sei porquê, fiquei sempre com a ideia que foi no PBX, em 1967, que deste a conhecer as Cantigas do Maio. Talvez porque a esse espantoso monumento da MPP /Canção de Intervenção nada foi feito antes nem nada foi feito depois que se igualasse.
Para mim, o momento do solitário encontro no cais e o episódio do "cravanço" do PBX constituíram a revelação em corpo inteiro de um José Afonso que andou pela nossa terra, como tu próprio declararias mais tarde, a pagar a sua dívida política e cultural para fins que considerava correctos e a pessoas ou organizações para quem valia a pena fazê-lo.
Jornalista da Rádio, foi a ti, à inspiração da tua música e ao apelo dos teus versos que recorri, como outros companheiros, nos tempos de Salazar e Caetano, para fazer passar a mensagem do inconformismo.
Tu dizias por música o que nós não podíamos dizer por palavras. O que nós não tínhamos coragem para dizer por palavras. Devo-te essa lição.
Devo-te tudo o que se deve a quem nos dá força para resistir. Tudo o que se deve a quem tem a coragem de ser até ao fim igual a si mesmo e às ideias que apregoou algum dia.
"Outra voz outra garganta/Outra mão que se estende à que tombara/Uma fagulha num palheiro acesa/Ó meus irmãos a luta não pára".



Adelino Gomes (jornalista)
Revista da AJA edição n.º 1 (primeiro trimestre do ano de 1988, páginas 6 e 7)
Nota: o título deste post é da responsabilidade dos administradores deste blogue.

1 comentário:

Anónimo disse...

LINDO!